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Criaturas da noite
 
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    lÁZARO COVADLO  
       
   

"Há milénios, quando ainda era muito jovem e ignorante, conformava-me com o próprio sangue dos corpos que me hospedavam, quase todos herbívoros. Habitei os cavalos e bisontes primitivos e nidifiquei no ouvido de um belo mamute peludo. De todos eles extraía uma minúscula ração que me permitia subsistir. Nunca supus que pudesse haver manjares mais complexos até que, na parte do continente americano que hoje se conhece por México, saltei uma noite para o interior da orelha de um grande morcego. Desmodus rotundus, por este nome conhece a ciência este quiróptero mordedor. Anos mais tarde os sérvios chamaram-lhe vampiro, mas não é verdade que tenha alguma relação com os mortos-vivos. Desmodus rotundus, vampiro, criatura da noite. Chama-o como quiseres, mas é um animal estupendo, com o seu focinho húmido e congestionado e a sua afilada fieira de dentes. Quanto carinho tive por este antigo hospedeiro! Nunca mais esquecerei as nossas incursões nocturnas, uma vez que só se mostrava activo durante as horas mais escuras. Criaturinha da noite!, animalzinho de Deus! Evitava sempre a lua cheia, para se precaver dos ataques dos mochos. Recordo que procurávamos os nossos hóspedes entre as grandes manadas que repousavam no interior das florestas: gamos, javalis, tapires, jaguares. Que delicioso é o sangue do jaguar! Que sangue tão vigoroso! Quando estes animais
dormiam, o meu morcego pousava-se com suavidade sobre
as suas costas ou qualquer outra parte do corpo que estivesse
exposta, e, sem lhes causar nenhuma dor, fazia em qualquer zona falha de pêlo uma pequena ferida para retirar uma tira de pele de poucos milímetros quadrados. Lambia o sangue, mas não havia hemorragia, uma vez que a saliva do Desmodus rotundus é um poderoso coagulante.

“O meu Desmodus rotundus habitava na companhia de uma
centena dos seus congéneres no interior de uma profunda gruta
rochosa. Ali era fresco. Escuridão e frescura, e numa dada tarde
dormíamos calmamente até que entraram uns humanos. Eram
conquistadores espanhóis, e quando os morcegos se assustaram e
começaram a voar estouvadamente dentro da gruta, os soldados, que também se sobressaltaram, começaram a disparar os seus arcabuzes. Pum!, pum!, pum! Foi a primeira vez que cheirei, através do focinho de um hospedeiro, o aroma agridoce da pólvora incendiada. O meu Desmodus rotundus foi dos primeiros a cair. Ao notar que o seu sangue começava a esfriar empreendi a procura de outro hóspede. E foi assim que entrei na orelha de Giorolamo Benzoni, que não era espanhol mas italiano: um estudioso veneziano que acompanhava os conquistadores. Com ele viajei pela primeira vez para Itália e deleitei-me com o espectáculo da arte mais maravilhosa da época. Este foi, para mim, um período de intensa aprendizagem.

“Quando Giorolamo morreu saltei para a orelha de um religioso,
o padre Giorgio da Luppi, que em pouco tempo mercê da minha ajuda, adquiriu a dignidade de cardeal e foi enviado à Polónia em missão diplomática, onde o meu hospedeiro – outra vez graças a seguir os meus bons conselhos – logrou converter
ao catolicismo Esteban I Báthori, que também era, nessa época,
princípe da Transilvânia. Certo dia em que Erzsébet, sobrinha
do rei, visitava a corte, Giorgio da Luppi bebeu, durante o banquete de gala, de um copo envenenado e a sua santa cabeça caiu com estrépito sobre a mesa dos manjares. Que asco!, exclamou Erzsébet Báthory ao reparar que a cabeça cardinalícia tinha ido parar a uma bandeja de faisões cozinhados em azeite a ferver. Apanhei um grande susto porque tinha caido do lado da orelha em que me anichava e um intenso e viscoso calor atingia-me. Temi não poder sair com vida, mas o rei em pessoa – muito piedoso – levantou a cabeça do prato e ao comprovar que o seu visitante estava mesmo morto, benzeu-se e de seguida limpou o azeite da cara do religioso com a própria manga do seu manto. Foi então que Erzsébet Báthory se inclinou sobre o cadáver e perguntou com fingida inocência: Está morto este frade?

“Foi nesse momento que saltei para a sua orelha. Já sabia
quem e como era, pois pouco antes tinha-a contemplado com
os olhos de Giorgio da Luppi. Olhos ao serviço do desejo e da
concupiscência; olhos que, momentos antes de se fecharem para
sempre, se recriaram no espectáculo da beleza unida à mais extrema maldade: a dessa filha eleita de Lilith. Recordo com absoluta precisão os pecaminosos pensamentos – antes da sua morte – desse servidor de Deus, pensamentos que não o ajudariam a franquear as portas do céu, pois nem sequer tivera tempo de se confessar uma última vez. Mesmo assim, lembro a sensação da sua verga inquieta, graças ao entusiasmo. Erzsébet, naquele momento, tinha vinte anos e era uma verdadeira fêmea em todos os sentidos. Faltavam ainda uns anos para ser conhecida como a Condessa Sangrenta."

 
       
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    Este é um excerto de "Criaturas da noite " de Lázaro Covadlo  
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  Topo Tradução: F. J. Carvalho  
       
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