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Fome
 
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    ELISE BLACKWELL  
       
   

A meio de Dezembro, Leninegrado ainda não tinha visto a primeira tempestade de neve. Mas estava frio quando saí para o exterior, olhando através do derradeiro fragmento de luz, para a janela do nosso apartamento, imaginando Alena do outro lado do papel, a limpar a sua pequena e importante colecção de cactos, a esfregar as sementes das suculentas, sem nunca picar a ponta dos dedos.

Mas não tinha ilusões. Sabia que ela não estava ali, mas que desaparecera para sempre. Os meus olhos desviaram-se da fachada do prédio para o pequeno quadrado de céu negro suspenso acima, e vi a aurora boreal do novo Inverno pela primeira vez.

As luzes coloridas não eram tão espectaculares como por vezes são, como são quando tenho de me relembrar da sua explicação científi ca para me impedir o espanto.

Não, essa noite eram suaves e pareciam lançadas à mão. Atiradas por dedos fortes e pequenos.

Uma tarde, quando Albertine estava connosco, entrei no apartamento e encontrei Alena sentada no chão. Albertine
estava sentada numa cadeira atrás dela, a pentear e entrançar o seu cabelo brilhante pálido. Lançaram-me um breve olhar, mas de resto ignoraram-me.
– O que acontece à minha mãe e ao meu pai se eles morrerem? – perguntou Albertine, prendendo uma trança grossa do cabelo de Alena na boca.
– Há muitas respostas para essa pergunta. As pessoas acreditam em muitas coisas.

Albertine prendeu a trança firmemente na mão, cuspindo um fio de cabelo solto, e a mostrar o primeiro sinal de impaciência.
– Isso sei eu, mas quem está certo?
– Depende de onde eles vivem e quem os governa – disse eu.
Albertine ofereceu-me o olhar mais longo e límpido que alguma vez me deu e acenou a cabeça.
– Não – disse Alena. – Apenas uma resposta está certa. Mas não sabemos qual. Acredito que voltarás a ver os teus pais.
– Se voltar, não será aqui – disse Albertine.

Quando falavam disso, e falavam raramente, os babilónios
descreviam o lugar dos mortos como um lugar onde o pó é sustento, e o barro é alimento. Convencidos de que os seus pecados seriam castigados neste mundo, nesta vida – seja por homens ou por deuses – tinham pouco interesse no inferno.

As pessoas sofrem, claro, mas menos pelos seus pecados do que meramente pelo facto de serem humanos. Em geral, escapamos incólumes aos nossos crimes. As nossas ofensas são perdoadas por aqueles que ofendemos. Os nossos segredos permanecem segredos. Blasfemamos, e o relâmpago não nos atinge. Mas é claro que há muitas excepções. Às vezes na vida, assim como na literatura, as pessoas têm o que justamente merecem. O homem ganancioso perde tudo o que tem porque não resiste a obter mais
riquezas. A coscuvilhice da vila é arruinada pela sua própria
língua. O juiz cruel deve implorar misericórdia pelos seus sadismos pessoais.

Mas normalmente o destino não intervém de forma tão directa, e não há ninguém para nos castigar se não nos punirmos a nós próprios.

Gozei tanto prazer na minha vida. Tentei lembrar-me dos nomes das mulheres cujo prazer teria trocado por uma última hora com a minha Alena, em saúde ou mesmo na doença. Alguns eu conseguia lembrar-me, outros não. Sabia que a troca que desejava não estava ao meu alcance.

Agora que evitava Lídia e tinha recusado Klavdiya, só me restava rir da minha fi delidade tardia. Os americanos que conheço gostam de dizer “mais vale tarde do que nunca”, mas isto nada significa para mim.

 
       
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    Este é um excerto de "Fome" de Elise Blackwell  
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  Topo Tradução: Safaa Dib  
       
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