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    Memória do Fogo 1. Os Nascimentos  
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    Eduardo galeano  
       
   

1493 / Barcelona
Dia de Glória


Anunciam-no as trombetas dos arautos. Dobram os sinos e os tambores redobram alegrias.
O Almirante, recém-voltado das Índias, sobe a escadaria de pedra e avança sobre o tapete carmesim, por entre os esplendores de seda da corte que o aplaude. O homem que realizou as profecias dos santos e dos sábios chega ao estrado, ajoelha-se e beija as mãos da rainha e do rei.
Por detrás irrompem os troféus. Cintilam sobre as bandejas as peças de ouro que Colombo recebeu em troca de espelhitos e barretes coloridos nos remotos jardins recém-brotados do mar.
Sobre ramagens e folhagens, desfilam as peles de lagartos e serpentes; e atrás entram, tremendo, chorando, os seres jamais vistos. São os poucos que ainda sobrevivem ao resfriamento, ao sarampo e ao asco pela comida e pelo mau cheiro dos cristãos. Não vêm nus, como estavam quando se aproximaram das três caravelas e foram apanhados. Foram recém-cobertos por calções, camisolas e uns quantos papagaios que lhes puseram nas mãos e sobre as cabeças e os ombros. Os papagaios,
desplumados pelos maus ventos da viagem, parecem tão moribundos como os homens. Das mulheres e dos meninos capturados, não escapou nem um.
Escutam-se maus murmúrios no salão. O ouro é pouco e em lado
nenhum se vê pimenta preta, nem noz moscada, nem cravo, nem gengibre; e Colombo não trouxe sereias barbudas nem homens com rabo, daqueles que têm um só olho e um só pé, tão grande o pé que, alçando-o, protegem-se dos sóis violentos.

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1493 / Roma
O testamento de Adão


Na penumbra do Vaticano, fragrante de perfumes do Oriente, o Papa dita uma nova bula.
Há pouco tempo que Rodrigo Borgia, valenciano da aldeia de Xátiva, se chama Alexandre VI. Não passou ainda um ano desde o dia em que comprou a pronto pagamento os sete votos que lhe faltavam no Sacro Colégio e pôde trocar a púrpura de cardeal pela capucha de arminho do Sumo Pontífice.
Mais horas dedica Alexandre VI a calcular o preço das indulgências do que a meditar o mistério da Santíssima Trindade. Ninguém ignora que prefere as missas muito breves, salvo as que em sua câmara privada celebra, mascarado, o bobo Gabrielino, e toda a gente sabe que o novo Papa é capaz de desviar a procissão do Corpo de Deus para que passe por baixo da varanda duma mulher formosa.
Também é capaz de cortar o mundo como se fosse um frango: levanta a mão e traça uma fronteira, de cabo a cabo do planeta, através do mar desconhecido. O apoderado de Deus concede, à perpetuidade, tudo o que se haja descoberto ou se venha a descobrir a oeste daquela linha, a Isabel de Castela e Fernando de Aragão e a seus herdeiros no trono espanhol. Recomenda-lhes que às ilhas achadas ou por achar enviem homens bons, tementes a Deus, doutos, sábios e experientes, para que instruam os naturais na fé católica e lhes ensinem bons costumes.
À coroa portuguesa pertencerá o que se descubra a leste.
Angústia e euforia das velas desfraldadas: já Colombo está preparando, na Andaluzia, a sua segunda viagem até às paragens onde o ouro cresce em cachos nas vinhas e as pedras preciosas aguardam nos crânios dos dragões.

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1514 / Rio Sinu
O requerimento


Navegaram muito mar e muito tempo e estão fartos de calores, selvas e mosquitos. Cumprem, não obstante, as instruções do rei: não se pode atacar os indígenas sem requerer, antes, a sua subjugação. Santo Agostinho autoriza a guerra contra quem abuse da sua liberdade, porque na sua liberdade estariam em perigo não sendo domados; mas bem o diz Santo Isidoro que nenhuma guerra é justa sem prévia declaração.
Antes de se lançar sobre o ouro, grãos de ouro talvez do tamanho de ovos, o advogado Martín Fernández de Enciso lê com pontos e vírgulas o ultimato que o intérprete, aos tropeções, demorando-se na entrega, vai traduzindo.
Enciso fala em nome do rei D. Fernando e da rainha D. Juana, sua filha, domadores das gentes bárbaras. Faz saber aos índios do Sinu que Deus veio ao mundo e deixou em seu lugar S. Pedro, que S. Pedro tem como sucessor o Santo Padre e que o Santo Padre, Senhor do Universo, fez mercê ao rei de Castela de toda a terra das Índias e desta península.
Os soldados assam nas armaduras. Enciso letra miúda e sílaba lenta, exige aos índios que deixem estas terras, pois não lhes pertencem, e que, se quiserem continuar a viver aqui, paguem a suas Altezas tributo de ouro em sinal de obediência. O intérprete faz o que pode.
Os caciques escutam, sentados, sem pestanejar, o estranho personagem que lhes anuncia que em caso de negativa ou demora lhes fará guerra, os converterá em escravos bem como suas mulheres e filhos e como tais os venderá e deles disporá, e que as mortes e os danos dessa justa guerra não serão culpa dos espanhóis.
Respondem os caciques, sem olharem para Enciso, que muito generoso com o alheio tinha sido o Santo Padre, que devia estar bêbado quando dispôs do que não era seu, e que o rei de Castela é um atrevido, porque vem ameaçar quem não conhece.
Então, corre sangue.
Em seguida, o longo discurso se lerá em plena noite, sem intérprete e a meia légua das aldeias que serão assaltadas de surpresa. Os indígenas, adormecidos, não escutarão as palavras que os declaram culpados dos crimes cometidos contra eles.

 
       
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    Este é um excerto de "Memória do Fogo 1: Os Nascimentos" de Eduardo Galeano  
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  Topo Tradução: António Marques  
       
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